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Formol na Ração: O Risco de Câncer para Cães e Gatos é Real? O Que a Ciência Diz

Uma análise da literatura científica sobre o uso de formaldeído em alimentos para pets


Imagem para post de blog sobre segurança de ração para pets. À esquerda, um pote com ração seca e crocante. À direita, um cão Golden Retriever e um gato de pelo curto, ambos saudáveis, olhando para o tutor. A imagem simboliza a preocupação com a alimentação segura e a saúde de cães e gatos.



UMA NOVA ERA NA ALIMENTAÇÃO PET


O mercado de alimentos para animais de companhia vive uma revolução impulsionada por uma mudança fundamental na nossa relação com os pets. Com o aumento da longevidade dos animais, a preocupação com a saúde e o bem-estar a longo prazo tornou-se um fator decisivo na escolha dos alimentos. O consumidor atual busca nos rótulos mais do que nutrição básica; procura por segurança, ingredientes de alta qualidade e a promessa de uma vida mais longa e saudável para seus companheiros. Essa mudança no perfil de consumo impulsiona a indústria e os órgãos reguladores a reavaliarem práticas e ingredientes consolidados.

É neste cenário que a discussão sobre o uso de formaldeído (formol) em rações e seus ingredientes se torna central, especialmente com a iminente reavaliação de sua permissão pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) no Brasil. Historicamente, o formaldeído foi empregado como um agente de alta eficácia no controle de patógenos, especialmente bactérias do gênero Salmonella, um risco real para a saúde animal e humana (WALES; ALLEN; DAVIES, 2010). O objetivo deste artigo é realizar uma análise técnica da literatura científica disponível, apresentando os dados sobre a eficácia, os riscos toxicológicos e as alternativas ao formaldeído, a fim de subsidiar uma compreensão clara e baseada em evidências sobre o tema.


A FUNÇÃO DO FORMOLDEÍDO: DADOS SOBRE SUA EFICÁCIA ANTIMICROBIANA


A utilização do formaldeído na indústria de rações é historicamente justificada por sua potente ação antimicrobiana. Ingredientes de alto valor nutricional, como farinhas de origem animal e farelos de oleaginosas, são pontos de atenção para o controle microbiológico (WALES; ALLEN; DAVIES, 2010). Estudos científicos demonstram a eficácia do formaldeído neste controle:


  • Em uma análise comparativa de 13 formulações comerciais de ácidos orgânicos destinadas ao controle de Salmonella, o produto que continha formaldeído foi consistentemente o mais ativo em todas as matrizes testadas (água, ração, cama de aviário, conteúdo de papo e ceco), superando os demais em 1 a 3 unidades logarítmicas na redução bacteriana (WALES et al., 2013).

  • Tratamentos de farinhas de proteína animal com produtos à base de formaldeído e ácido propiônico mostraram-se capazes de eliminar contaminações de 102 a 104 ufc/g de Salmonella em um período de 24 horas (Carrique-Mas et al., 2007, citado por WALES; ALLEN; DAVIES, 2010).

  • A fumigação de ração para pintos com gás de formaldeído foi capaz de reduzir a contaminação artificial por Salmonella a níveis indetectáveis em 12 horas (DUNCAN; ADAMS, 1972, citado por WALES; ALLEN; DAVIES, 2010).


Esses dados confirmam que o formaldeído é uma ferramenta quimicamente eficaz para a descontaminação de ingredientes e rações.


ANÁLISE DOS RISCOS: O QUE A LITERATURA CIENTÍFICA APONTA


A reavaliação do uso do formaldeído é motivada por preocupações de segurança documentadas em um vasto corpo de pesquisas. A Agência Internacional de Pesquisa sobre Câncer (IARC) classifica o formaldeído como Grupo 1 - Carcinogênico para Humanos, com base em evidências consideradas suficientes (NAYAK et al., 2024).


1. Mecanismos de Ação Carcinogênica


A literatura descreve múltiplos mecanismos pelos quais o formaldeído pode induzir o câncer:

  • Danos ao DNA: Por sua alta reatividade, o formaldeído forma adutos de DNA e ligações cruzadas entre DNA e proteínas (crosslinks), que podem interferir nos processos de replicação celular e induzir mutações (SWENBERG et al., 2013). Estudos demonstraram sua capacidade de induzir quebras na fita de DNA em espermatozoides e linfócitos de ratos (JIMÉNEZ-VILLARREAL et al., 2017).

  • Estresse Oxidativo: A exposição ao formaldeído está associada à geração de espécies reativas de oxigênio (ROS), que causam danos oxidativos às células (MAHDI; AULANI'AM, 2015).

  • Promoção Tumoral: Estudos em ratos indicam que a administração oral de formaldeído aumenta a síntese de DNA e a atividade da enzima ornitina descarboxilase na mucosa gástrica, sugerindo uma atividade promotora de tumores (TAKAHASHI et al., 1986; FURIHATA; YAMAKOSHI; MATSUSHIMA, 1988).


2. Evidências em Animais de Laboratório, Produção e Companhia


Estudos de longo prazo demonstram os efeitos carcinogênicos da ingestão de formaldeído. Ratos que receberam a substância em água potável apresentaram um aumento na incidência de tumores malignos totais e efeitos carcinogênicos em órgãos e tecidos específicos (SOFFRITTI et al., 2002). Uma ampla revisão da literatura, que analisou centenas de artigos científicos sobre o tema, apontou:


  • Para Cães e Gatos: Evidências de aumento na incidência de tumores nasais, carcinomas orais, linfomas e tumores gastrointestinais em animais expostos cronicamente.

  • Para Animais de Produção: Documentação de lesões pré-neoplásicas no trato respiratório de frangos, carcinomas hepatocelulares em suínos e tumores hepáticos em peixes de cultivo.


Com base em um conjunto de evidências, a Autoridade Europeia para a Segurança dos Alimentos (EFSA) concluiu que uma concentração segura de formaldeído em rações para todas as espécies animais não pôde ser determinada (EFSA FEEDAP PANEL, 2014a).


3. Riscos Adicionais na Produção de Pet Food


Além da carcinogenicidade, a literatura aponta dois pontos técnicos relevantes no contexto de alimentos para pets:


  • Contaminação Pós-Extrusão: Embora o processo de extrusão utilize altas temperaturas capazes de inativar patógenos, a contaminação por Salmonella pode ocorrer posteriormente, durante a aplicação de palatabilizantes e gorduras. Este é um desafio conhecido no setor, que busca continuamente formas de mitigar este risco (CHEN, 2017). O formaldeído era utilizado como uma barreira química nesta etapa.

  • Efeito Mascaramento (Masking): Resíduos da substância na ração podem inibir o crescimento de bactérias viáveis durante análises laboratoriais, gerando resultados falso-negativos e comprometendo a confiabilidade dos programas de controle de qualidade (WALES; ALLEN; DAVIES, 2010; JARQUIN et al., 2009).


4. A Questão da Concentração Residual e o Risco Real


Um ponto central no debate técnico é se a concentração residual de formaldeído na ração final seria capaz de gerar os problemas de saúde apontados. Argumenta-se que múltiplos fatores reduzem a exposição final do animal. Primeiramente, o formaldeído é uma substância volátil, e parte do seu efeito protetor pode ser limitado pela evaporação após a mistura, a menos que o material seja mantido em silos fechados (DAVID et al., 1972, citado por WALES; ALLEN; DAVIES, 2010). Em segundo lugar, quando um ingrediente tratado, como uma farinha de origem animal, é incorporado a uma formulação completa, ocorre um efeito de diluição, resultando em uma concentração final muito menor na ração consumida pelo pet. A literatura aponta que o formaldeído é um metabólito normal em sistemas mamíferos e que existe um limiar para sua carcinogenicidade. Baseado nisso, alguns estudos deduzem que ele não é carcinogênico em baixos níveis de exposição (RESTANI; GALLI, 1991). Em contrapartida, órgãos reguladores como a EFSA adotam uma postura mais cautelosa, afirmando que, embora a irritação local promova fortemente a carcinogênese, concentrações mais baixas são conhecidas por produzir adutos de DNA. Por essa razão, o painel da EFSA considera prudente não encarar a exposição a concentrações não irritantes como totalmente isenta de risco (EFSA FEEDAP PANEL, 2014a).


O IMPACTO DA PROIBIÇÃO E AS ALTERNATIVAS DISPONÍVEIS


A transição para um cenário sem formaldeído implica desafios econômicos, uma vez que se trata de uma solução de baixo custo. A indústria de reciclagem de subprodutos animais e os fabricantes de ração teriam que absorver os custos de tecnologias alternativas, o que poderia impactar o preço final ao consumidor. Contudo, a pesquisa científica já aponta para um leque de alternativas, muitas com status GRAS (Generally Recognized as Safe), alinhadas à demanda do consumidor por produtos "clean label":


  • Ácidos Orgânicos: Compostos como os ácidos fórmico, propiônico e lático são a alternativa mais comum. Demonstram eficácia, especialmente em ambientes de baixo pH, como o estômago de monogástricos (WALES; ALLEN; DAVIES, 2010). No entanto, sua eficácia pode ser inconsistente e, em alguns casos, inferior à do formaldeído em matrizes de ração seca (WALES et al., 2013).

  • Antimicrobianos de Origem Vegetal (Fitogênicos): Compostos como o timol (do tomilho), carvacrol e trans-cinamaldeído demonstraram eficácia na redução de Salmonella em rações (CHEN, 2017). Extratos de plantas como Euphorbia prostrata também mostraram atividade anti-Salmonella em estudos in vivo (TALA et al., 2015).

  • Probióticos: A aplicação de bactérias benéficas, como o Lactobacillus plantarum, pode inibir patógenos por competição. Um estudo demonstrou que a combinação de timol com L. plantarum obteve um efeito sinérgico na redução de Salmonella em ração seca para cães (CHEN, 2017).

  • Novas Tecnologias: O uso de compostos bioativos de microalgas, com atividade antioxidante e antimicrobiana (SINGH et al., 2025), e de nanopartículas, como as de prata, que demonstraram atividade contra Salmonella multirresistente (NASEER et al., 2018), são áreas de pesquisa em ascensão.


CONCLUSÃO


A análise da literatura científica revela um cenário complexo. Por um lado, a eficácia do formaldeído como agente antimicrobiano no controle de patógenos como a Salmonella é bem documentada em diversos estudos. Por outro lado, um volume significativo de pesquisas e pareceres de agências reguladoras internacionais levantam questionamentos sobre sua segurança. A classificação do formaldeído como carcinogênico pela IARC, juntamente com estudos que demonstram efeitos adversos e potencial carcinogênico em animais, formam a base técnica para a reavaliação de seu uso. A discussão regulatória no Brasil, portanto, reflete o balanço entre o benefício de seu poder antimicrobiano e os riscos apontados pela ciência. Este debate é impulsionado não apenas pelo corpo de evidências científicas, mas também por uma clara evolução no mercado consumidor, que cada vez mais prioriza a longevidade e o bem-estar dos animais de companhia, demandando maior transparência e o uso de ingredientes com perfis de segurança mais robustos. A transição para alternativas, embora apresente desafios para a cadeia produtiva, representa uma resposta a essas novas exigências científicas, regulatórias e de mercado.




REFERÊNCIAS:


DUNCAN, M. S.; ADAMS, A. W. Effects of a chemical additive and of formaldehyde gas fumigation on Salmonella in poultry feeds. Poultry Science, v. 51, p. 797-802, 1972.

EMORUWA, T. G. et al. Anti-Salmonella activity of Gossypium hirsutum leaf extracted with carbonated drink and its toxicological evaluation in-vivo. Microbes and Infectious Diseases, v. 4, n. 3, p. 1022-1040, 2023.

FURIHATA, C.; YAMAKOSHI, A.; MATSUSHIMA, T. Inductions of Ornithine Decarboxylase and DNA Synthesis in Rat Stomach Mucosa by Formaldehyde. Japanese Journal of Cancer Research, v. 79, n. 8, p. 933-936, 1988.

IFIF. Comparison of Regulatory Management of Authorized Ingredients, Approval Processes, and Risk-Assessment Procedures for Feed Ingredients. International Feed Industry Federation, 2013.

JIMÉNEZ-VILLARREAL, J. et al. Formaldehyde induces DNA strand breaks on spermatozoa and lymphocytes of Wistar rats. Genetics and Molecular Research, v. 16, n. 1, 2017.

MAHDI, C.; AULANI'AM, A. Formalin Exposure on the Rats Feeding Diet on Antioxidant Enzymatic activity and Oxidative Damage of Rats Liver Tissue. Jurnal Pangan dan Agroindustri, v. 3, n. 4, p. 1321-1329, 2015.

NASEER, B. et al. Importance and health hazards of nanoparticles used in the food industry. Nanotechnology Reviews, v. 7, n. 6, p. 623-641, 2018.

NAYAK, S. et al. Formaldehyde as Preservative for Fish and Seafood: A Boon or a Bane. Journal of Food Protection, v. 87, n. 11, p. 100410, 2024.

SINGH, L. A. et al. Microalgae-derived antioxidants and antimicrobials: a sustainable approach for natural food preservatives. Frontiers in Sustainable Food Systems, v. 9, 2025.

SOFFRITTI, M. et al. Results of long-term experimental studies on the carcinogenicity of formaldehyde and acetaldehyde in rats. Annals of the New York Academy of Sciences, v. 982, p. 87-105, 2002.

TAKAHASHI, M. et al. Effects of ethanol, potassium metabisulfite, formaldehyde and hydrogen peroxide on gastric carcinogenesis in rats after initiation with N-methyl-N'-nitro-N-nitrosoguanidine. Japanese Journal of Cancer Research, v. 77, n. 2, p. 118-124, 1986.

TALA, D. S. et al. In vivo anti-salmonella activity of aqueous extract of Euphorbia prostrata Aiton (Euphorbiaceae) and its toxicological evaluation. Asian Pacific Journal of Tropical Biomedicine, v. 5, n. 4, p. 310-318, 2015.

WALES, A. D.; ALLEN, V. M.; DAVIES, R. H. Chemical Treatment of Animal Feed and Water for the Control of Salmonella. Foodborne Pathogens and Disease, v. 7, n. 1, p. 3-15, 2010.

WALES, A. et al. Assessment of the anti-Salmonella activity of commercial formulations of organic acid products. Avian Pathology, v. 42, n. 3, p. 268-275, 2013.

 
 
 

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